sexta-feira, 31 de julho de 2015

Um conto diferente: Vingança póstuma

[Inaugura-se aqui uma rubrica destinada a contos onde o erotismo não é a prioridade. São histórias de temáticas genéricas, digamos assim.]

Carla acordou, sentindo a sua cabeça ainda azamboada. Era noite cerrada e aquela zona devia ser afastada da cidade, já que não se viam luzes para além da iluminação proveniente da Lua Cheia, que brilhava num céu totalmente descoberto, e de esse luar revelar que a rapariga estava no meio de uma plantação de pés de milho, com um carreiro estreito a atravessá-lo onde o seu corpo havia sido deixado. Carla não fazia ideia do sítio onde se encontrava e não se conseguia recordar do que acontecera antes de ficar inconsciente. Os seus ouvidos captaram o som de grilos, do piar de uma coruja de vez em quando…


A rapariga ergueu-se, sentindo imediatamente as pedrinhas e a terra que povoavam o chão. Ela olhou para baixo, para os pés, e viu que os seus sapatos haviam desaparecido, assim como a sua mala onde se encontravam a sua carteira com documentos e telemóveis. Carla entrou em pânico e olhou em volta, tentando encontrar algo ou alguém, mas a única coisa que os seus olhos puderam descortinar foi pés de milho. Ela começou a sentir-se desorientada e desamparada, mas sabia que não podia ficar ali eternamente, ninguém iria dar com ela ali. Ela tinha de se pôr a mexer.
Carla começou a caminhar pelo carreiro, escolhendo um lado e esperando que, andando naquela direcção, ela conseguisse saísse dali, chegar à civilização ou, ao menos, a uma casa habitada – afinal de contas, aquele terreno devia pertencer a alguém, certo? Gemendo a cada passo que dava, sentindo todas as pedras e pedrinhas que se encontravam no chão, Carla foi avançando por aquela vereda. Em alguns pontos era difícil passar pelos pés de milho, mas, lentamente, ela foi avançando, esperando que, do outro lado, ela encontrasse auxílio… e, quem sabe, uma explicação para o que lhe havia sucedido.
Todavia, após uma hora de caminhada, ela continuava rodeada pelo verde dos pés de milho. Os seus pés já sangravam, deixando algumas marcas encarnadas sempre que dava um passo: por mais de uma vez ela tivera de parar para tirar pauzinhos ou pedras afiadas que se haviam enterrado na sua carne. Então, Carla pareceu ver algo mais que verde: uma silhueta humana de qualquer tipo. Ela estugou o passo o máximo que os seus pés feridos o permitiram, tentando encontrar aquela figura, acabando por chegar a uma clareira. No centro da clareira, estava um espantalho de palha – a figura que ela havia visto. Levantando os olhos para o céu, ela caiu de joelhos perto daquela figura, chorando de frustração.
- Porquê?! – gritou – Porquê eu?! Porquê isto?! Que fiz eu para merecer isto?!
Carla parou de chorar, todavia, quando ouviu uma voz nas suas imediações:
- Olá, Carla.
Olhando ao seu redor com os olhos cheios de lágrimas, Carla não conseguiu ver ninguém perto de si. Mas ela tinha a certeza de ter ouvido alguém! Decerto que aquilo não podia ter sido a sua imaginação… Então, os seus olhos quedaram-se pelo espantalho. Era um boneco feito de sacos de serapilheira e cheio de palha, vestido com trapos velhos e restos de roupas antigas, com um panamá descorado na cabeça e preso a um pau espetado no chão, na pose tradicional de estar de braços e pernas abertos; num dos braços tinha uma luva calçada na ponta, no outro, se tivesse existido alguma, já se havia perdido. Estranhamente, aquele espantalho parecia estar mais bem feito que a maioria dos bonecos que se encontram no dia-a-dia, dando ideia que alguém se preocupou em fazer um espantalho que pudesse de facto parecer-se com uma pessoa… ou então que alguém tinha demasiado tempo livre. A rapariga foi-se aproximando, com curiosidade, reparando na cara do boneco: alguém queria mesmo que aquele espantalho fosse assustador, e havia colocado uma máscara de um monstro qualquer na “cabeça” do boneco. De súbito, Carla deu um pulo para trás, assustada, quando a “mão boa” do espantalho tentou agarrar-lhe o braço!
- Olá, puta.
Carla rastejou pelo chão, com o coração a bater desalmadamente, tentando afastar-se daquele boneco o máximo possível.
- Qu-quem… o que… és tu?
O espantalho libertou-se do pau a que havia sido atado, dando alguns passos titubeantes; de seguida, ele começou a cambalear em direcção à rapariga.
- A Morte.
Carla levantou-se e passou a correr pelo espantalho, que se movia lentamente, metendo-se pelo carreiro que saía daquela clareira. Ignorando por completo a dor atroz que sentia nos pés e as arestas que a iam magoando ainda mais, a rapariga correu a bom correr, completamente dominada pelo terror de ter um boneco a persegui-la e a anunciar que era a Morte. Nem por uma vez ela se deteve ou olhou para trás para ver se aquela coisa a perseguia, nem sequer para ganhar fôlego: ela apenas se limitou a correr.
A rapariga correu sem parar durante imenso tempo, até que o campo de milho finalmente acabou. O carreiro por onde Carla seguia também terminou um pouco mais à frente, num muro alto e branco, com um portão de ferro fechado a cadeado mais desviado. Com o intuito de se distanciar daquela coisa ao máximo, a rapariga olhou febrilmente em redor, por uma maneira de ultrapassar aquela barreira; não descortinando outra hipótese, Carla acabou por trepar pelo próprio portão, onde havia alguns sítios onde enfiar os pés ensanguentados. Assim que ela chegou ao topo do portão e, quanto tentava mudar de posição, ela desequilibrou-se e caiu no chão.
Cuspindo terra, Carla abanou a cabeça, tentando sacudir a tontura que a afectara após embater no solo com estrondo, sentindo uma dor aguda no seu joelho direito. A rapariga levantou-se, gemendo das dores no joelho e em ambos os pés – ela nem queria olhar para as plantas dos pés: pelas dores, provavelmente estariam em carne viva – e olhou em redor, tentando descobrir onde estava. A sensação de segurança de ter ultrapassado uma barreira física que aquele espantalho teria dificuldades em ultrapassar depressa foi substituída por mais um enorme susto, assim que os seus olhos captaram as campas de mármore, as estátuas de anjos, os ramos de flores, os mausoléus desgastados pelo tempo, os ciprestes abanando com a brisa suave. Ela havia acabado de entrar num cemitério. O ambiente estava extremamente silencioso – não se ouviam grilos, nem pássaros de qualquer espécie – e o luar brilhava nas pedras tumulares, dando a todo aquele lugar uma aura assombrada.
“O que hei-de fazer?” interrogou-se ela, tentando acalmar-se. A sua mão, suja de terra, passou pelo seu cabelo, enquanto ela tentava ganhar alguma força anímica. “Pelo menos aquela coisa não vem atrás de mim aqui… se é que é real. Não consegue passar pelo muro…”
Carla tentou dar uns passos mas voltou a cair, a dor no joelho era demasiado forte. Ela tentou levantar-se outra vez…
- Deixa-me ajudar-te. – disse uma voz atrás dela.
Ela virou a cabeça, soltando um grito ao reparar em quem havia falado. O espantalho!! Mas como? Ele andava tão depressa como uma lesma, não era possível tê-la apanhado com aquela facilidade!
A mão forte do espantalho – aquela dotada da luva – agarrou na rapariga pelo ombro e forçou-a a levantar-se, com Carla a gemer de dor.
- Tu e eu temos contas a ajustar, Carla Simões. – declarou ele, naquela voz seca que parecia vir de todo o lado e de lado nenhum, ao mesmo tempo que avançava naquele passo titubeante e arrastando a rapariga com ele.
- Qu-quem és tu?! – gritou Carla, aterrorizada.
O espantalho não respondeu: ele limitou-se a andar, sempre arrastando a pobre rapariga, apenas se detendo ao chegar a uma das poucas campas recentes daquele cemitério: ao lado estava uma cova com um caixão no fundo. Ele atirou Carla para o chão, mostrando pouco interesse pelo estado da sua cativa.
- Sinto-me triste. Já te esqueceste do teu querido marido?
Ela encarou aquela figura.
- O quê?!
- Oh, eu não acredito que já tenhas apagado todas as minhas memórias da tua mente…
- Mas… mas… mas tu estás morto!!
- Eu estou bem ciente disso, muito obrigado. Também estou ciente de que foste tu a matar-me… tu e aquela odiosa tua irmã.
Poderia mesmo ser Miguel? Ela ainda se lembrava bem do que acontecera havia uns meses antes, quando Carla, farta daquele rapaz que não tinha muito tempo para ela (graças a ter três trabalhos em part-time para sustentar o estilo de vida exorbitante da esposa) e querendo ficar definitivamente com o seu amante, colocara um comprimido de dormir no copo do seu marido. Teresa, a sua irmã, havia-a ajudado a carregar o corpo inconsciente de Miguel para o carro, que Carla conduziu, sendo seguida por Teresa noutro carro. Finalmente, ao aproximarem-se de uma ravina, Carla saiu do carro e ambas as raparigas empurraram-no para a ribanceira, vendo-o explodir a meio da viagem. Graças à incompetência da polícia, tudo aquilo fora declarado como um acidente, e Carla assumiu o papel de viúva inconsolável, continuando os seus encontros com o amante, e varreu todo aquele assunto da sua mente…
… até àquela noite.
- Miguel…?
- Olá! Afinal de contas ainda te lembras de mim… – aquela voz riu-se, quanto o espantalho colocava as “mãos” nos quadris.
- T-tu és um es-espantalho…
- Errado. Eu sou um fantasma, que, por acaso, está a habitar este espantalho. Há uma diferença, sabias?
- Um f-fantasma? – os lábios de Carla mal se moviam.
- Bem, na realidade, não; mas como é um bocadinho complicado de explicar, vamos assumir que sim. – o boneco esfregou as suas “mãos” – Bom, eu aposto que estás mortinha por saber o que se está a passar, como chegaste aqui, quem te deixou inconsciente ali no meio do campo de milho… mas a única coisa que te vou dizer é esta: quero vingança. E, enquanto eu estava ausente no outro mundo, desejei com tanta força que me pudesse vingar de quem me assassinou, de vocês duas, que o meu desejo se concretizou. Portanto… cá estamos.
Carla estava demasiado amedrontada para falar e a voz de Miguel continuou:
- Costuma-se dizer que “Deus escreve direito por linhas tortas”… ou é o Diabo? Nunca me lembro… de qualquer forma, isso aconteceu hoje, fofinha. Vamos apenas dizer que alguns amigos colocaram-te inconsciente e trouxeram-te para o campo de milho, longe de tudo e de todos, onde eu pudesse tratar de ti sem qualquer impedimento nem chatice.
Carla olhou em volta, aterrorizada ao máximo. Se o espantalho – ou Miguel – quisesse punir Teresa também, ela não podia estar muito longe; se ela a pudesse encontrar, talvez ambas pudessem derrotar aquela criatura…
- À procura da mana, adorada esposa?
Lentamente, Carla acenou. Ele parecia ter-lhe lido a mente…
- Estás sentada perto dela. – e o boneco levantou o braço, como que apontando para a campa recente.
A rapariga quase deu um pulo. Ele estaria a dizer-lhe que a irmã estava morta e enterrada?
- Enterrada, sim; morta, hmm… – o boneco parou por uns segundos – yep, morta também. Nem sequer me incomodei em verificar, após tê-la atirado para o buraco.
- T-tu enterraste a minha irmã viva, seu filho da puta doentio?!
- Bom, sim… depois de eu ter violado aquela puta.
Carla sentia-se dentro de um pesadelo retorcido. “Isto não me está a acontecer, isto é tudo um sonho, eu vou acordar a qualquer minuto e vou estar na minha cama…”
- Olha, isso tinha sido uma bela ideia: matar-te nos teus sonhos, ou entrar na tua mente e assustar-te de morte. Raios… tinha sido uma ideia genial.
Era perfeitamente óbvio que aquela assombração conseguia ler os pensamentos da rapariga amedrontada, e isso fê-la ficar ainda mais assustada.
- Bom, chega de palavreado: altura de passarmos à acção. – a mão do espantalho agarrou Carla pelo tornozelo e arrastou-a pela terra dura e cheia de pedrinhas, ferindo-a nas costas e rasgando-lhe o vestido. Finalmente, ele largou-a perto de um jazigo.
- O plano é bastante simples, na realidade, minha querida viúva-alegre: eu magoo-te de todas as maneiras possíveis e mais algumas que te lembre, depois atiro-te para a cova e enterro-te – quer ainda respires ou não. E, apesar de ocupar uma coisa cheia de palha ter as suas desvantagens, essa coisa ser um boneco relativamente bem feito anatomicamente é sempre uma vantagem.
O boneco rasgou então os farrapos que usava como calças, exibindo um pau que o criador daquele espantalho havia amarrado entre as pernas “apenas para a palhaçada”. Enquanto Carla ficava espantada a olhar para aquilo, a coisa aproveitou para amarrar os pulsos da rapariga com os farrapos das suas roupas e prender-lhe os tornozelos a uma cruz de ferro que estava ali ao pé.
- Pronto, presa e aberta… não é preciso amordaçar-te: estamos onde Judas perdeu as botas e eu quero ouvir-te gritar. – então, sem aviso, o espantalho pontapeou Carla no estômago, com ela a gritar e a rolar um bocado pelo chão – Quero infligir-te tanta dor como a que tu me provocaste, querida esposa.
“Porra, como é que os pontapés de um boneco de palha doem tanto?” pensou Carla, sentindo uma dor intensa na barriga… mas não teve tempo de protestar quando um segundo pontapé a atirou contra um jazigo.
Os pontapés duraram até o espantalho se aborrecer, aparentemente. A “viúva-alegre” estava encostada a um mausoléu, sangrando de diversos golpes e cortes, já com algumas nódoas negras, alguns ossos partidos e um fiozinho de sangue a escorrer-lhe pelo canto da boca. O que restava do seu vestido havia praticamente desaparecido, assim como a sua roupa interior: a rapariga estava quase nua.
- Chega disto, Carla… vamos passar a assuntos sérios.
O boneco segurou Carla pela cintura, segurando-a e mantendo-a imóvel. E, quando aquele pau que o espantalho tinha preso ao baixo-ventre entrou de rompante na vulva desprotegida da rapariga, ela deu um grito que quase lhe arrancou as cordas vocais.
- Vou-te foder até os miolos te saltarem da cabeça, dilecta esposa.
Ele violou Carla durante perto de uma meia-hora, insultando-a, gozando-a e deliciando-se com o choro, gritos e súplicas incessantes que a ex-mulher daquela assombração não parava de fazer; e, quando a sua voz começou a falhar, o espantalho começou a penetrá-la com mais força e velocidade, como se retirasse o maior prazer de ouvir a voz de Carla desaparecer após cada grito.
Então, o boneco possuído deteve-se.
- Bom, altura de experimentar coisas novas.
Ele saiu de dentro dela e virou-a, ficando Carla de rabo para o ar e sentindo o pó a colar-se às suas lágrimas e a entrar-lhe no nariz, fazendo-a tossir. A sua voz havia desaparecido, a sua vulva doía horrivelmente – e sabe-se lá em que estado estaria – e ela sentia-se completamente sem esperança.
Então, o boneco ajoelhou-se por trás dela, ouvindo-se uma gargalhada; logo a seguir o pau – com algumas farpas levantadas – foi empurrado para dentro do cu da rapariga com o mesmo vigor com que aquele espantalho do Inferno havia destruído a vulva de Carla. A única coisa que ela pôde fazer foi abrir a boca, sentindo terra a entrar-lhe nela e fazendo-a engasgar.
- Ohhh… – a voz de Miguel pareceu soar desapontada – tens andado a ser enrabada por aquele teu namorado novo, não é? Tens uma nalga tão aberta, já… e eu a esperar ter a primazia de te abrir a peidola…
Carla sabia que estava a ser destruída e que não havia nada que ela pudesse fazer para o impedir. Aquele boneco maldito estava interessado unicamente em magoar o seu corpo e mente e, num cemitério, àquela hora, não havia qualquer hipótese de salvamento. Esse facto fê-la perder a réstia de sanidade mental que ainda possuía; a rapariga abriu a boca, pronta a gritar (ou com intenções disso, pois a voz já não existia), mas ela voltou a engasgar-se quando mais terra lhe entrou na boca. Entretanto, o boneco comandado pela vontade de Miguel continuava a penetrar-lhe o cu, destruindo-o. E Carla já não queria saber disso: na realidade, ela já não queria saber de nada, só queria que tudo acabasse.
É impossível saber durante quanto tempo o espantalho violou o rabo daquela rapariga. Ela, por essa altura, já tinha perdido todo o contacto com a realidade: matá-la seria a coisa mais misericordiosa a fazer, especialmente com o nível de ferimentos infligidos no seu corpo. Todavia, o espantalho optou por continuar a enxovalhar Carla, magoando-a, batendo-lhe… e violando-a.
Quando aquela coisa abandonou o corpo de Carla, a Lua havia começado a descer no céu. Ele levantou-se, olhou para a sua ex-esposa – ou “o monte de carne que havia sido a sua ex-esposa” e riu-se.
- Bem, olha para ti, querida princesa… a implorares que alguém ponha fim ao teu sofrimento.
Agarrando na cruz onde os tornozelos de Carla haviam sido presos, o boneco voltou a arrastá-la pelo chão, largando-a no sítio onde Teresa estaria supostamente enterrada, virando-a de cara para cima. A testa de Carla tinha uma ferida feia – provavelmente feita após embater numa pedra durante o tempo que foi arrastada – e estava a encher-lhe a cara de sangue.
- Podia perfeitamente continuar a torturar-te durante mais tempo, até porque temos todo o tempo do mundo, mas… isto está a tornar-se algo monótono, não achas, fofinha? – proferiu o fantasma de Miguel – Todavia, creio ter a forma perfeita de acabar contigo.
Carla nem sequer olhou para ele: ela limitou-se a olhar com olhos mortiços para o céu. Rindo-se, a coisa ajoelhou-se e agarrou-lhe na garganta com a sua mão boa.
- Bom, eu posso estar a ocupar um simples boneco, mas isso não é a única coisa que eu sei fazer. Posso sempre acordar os teus maiores medos… – e após aquilo, ele pareceu beijá-la, deixando-a finalmente em paz.
Mesmo no seu estado mental, Carla sentiu algo entrar-lhe na boca, algo aéreo, como uma poeira qualquer, com um sabor horrível. Sem qualquer outra alternativa ela engoliu-o… e imediatamente começou a ver coisas. Quer dizer… eram o que aquilo seria, certo? Ilusões? Aquele monstro com os chifres grandes que saíra do outro jazigo não podia ser real, assim como o outro que saiu do mausoléu ao lado, com a cabeça cortada, ou aquele de pele esverdeada e úlceras ao longo do corpo que tinha vindo de outro jazigo, ou ainda o outro que estava a seu lado, de pele podre e larvas a estrebucharem nas feridas… aquilo tinha de ser um truque qualquer! Carla tentou agitar a cabeça, gritar, mexer-se, sem sucesso. A sua respiração estava acelerada ao máximo, o seu coração parecia querer sair do peito.
- Eish… isto é muito melhor que enterrar-te viva. – o espantalho estava espantado. Saltara para dentro da campa aberta e estivera entretido a tentar abrir o caixão – Mas… acho que mereces morrer como eu morri, fechado num local apertado, vendo todos os meus medos confirmarem-se. – o boneco saiu da campa e aproximou-se de Carla, dando-lhe um pontapé com força suficiente para a fazer rolar pelo chão e cair no caixão aberto, que se fechou com o impacto – Dorme bem, querida esposa.
Começou a ouvir-se uma gargalhada, e os ecos dessa gargalhada ainda se ouviam quando o espantalho, após se ter afastado uns passos, colapsou no chão, desmanchado e sem vida.

O Inspector Pedro Teixeira olhou para o corpo horrivelmente desfigurado que tinha aos seus pés e abanou a cabeça. Ele havia sido chamado umas horas antes àquele cemitério, após o coveiro ter ligado para o 112 a dizer que uma campa havia sido remexida e havia um cadáver feminino a mais dentro do caixão. Quando os polícias conseguiram içar o cadáver para fora da cova, sentiram um arrepio de horror: ela estava completamente nua, cheia de galos, manchas negras e feridas de cima a baixo. As suas pernas haviam sido libertadas da cruz de ferro a que haviam sido amarradas, revelando o estado horrendo em que estavam os seus órgãos sexuais: obviamente ela havia sido violada. Todavia, o que ainda metia maior impressão era a sua cara, com os olhos quase a saltarem das órbitas e a boca aberta ao máximo, quase como se tivesse gritado até morrer.
- Então, que temos? – disse o Inspector ao homem ajoelhado mais perto do cadáver, com o cartão de “médico-legista” ao peito.
- Sexo feminino, entre 25 a 30 anos, sem identificação. Os seus pulsos estão amarrados com farrapos, os seus tornozelos estavam presos àquela cruz de ferro – e apontou – retirada sem dúvida de uma outra campa, depois ela foi barbaramente agredida e violada.
- Causa de morte? – perguntou Pedro.
- Não há marcas de balas, nem de facas… só depois da autópsia poderei dizer-lhe algo em concreto. Todavia, se arriscasse um palpite…
O Inspector queria que o médico-legista se despachasse.
- Sim?
- Diria que esta pobre rapariga morreu de medo.
- Medo? – Pedro levantou uma sobrancelha.
- Sim, Inspector. Algo aterrorizou esta rapariga até morrer.
Não era um palpite assim tão rebuscado, olhando para o estado em que o assassino havia deixado o corpo. O Inspector já havia visto coisas brutais, mas o estado daquele corpo era algo no topo da escala.
- Data de morte?
- Não consigo dizer ainda. Olhando para o estado de decomposição… dois dias, talvez três. Mais uma vez, depois da autópsia conseguirei dizer-lhe algo mais definitivo.
- OK, está certo. Se já estiver despachado, tirem-na daqui.
- Certo, Inspector.
Enquanto os paramédicos iam buscar uma maca para levar o corpo, Pedro aproximou-se de um dos membros da equipa de analistas.
- Encontraste alguma coisa?
- Não e isso está a dar-me cabo da cabeça! – respondeu o outro – Esta rapariga morreu e não encontro qualquer prova de que tenha estado aqui outra pessoa com ela!
- Como assim?! Não encontraste nada?!
- Oh, encontrei muita coisa. Encontrei marcas de pegadas ensanguentadas, marcas de sangue em diversos jazigos e mausoléus, marcas de arrastamento ao longo da terra. Disso, fartei-me de encontrar inúmeros exemplares, tudo proveniente da nossa vítima. O que eu não encontro é uma única prova de que tenha estado aqui uma outra pessoa com ela: pegadas, cabelos, fios de roupa, nada!
O Inspector suspirou.
- Bom… continua a procurar. Ela não pode ter sido assassinada por um fantasma… ele deve ter deixado alguma marca!
- Não te preocupes, hei-de encontrar alguma coisa… – e a seguir murmurou – … espero.
Os olhos de Pedro olharam em redor, tentando descobrir algo, uma pista, qualquer coisa que fizesse sentido naquele caso. Eventualmente, ele avistou um panamá descorado encostado a um mausoléu, um pouco desviado do local do crime. Estranhando aquilo, ele aproximou-se, deparando-se com um espantalho desmantelado.
- Mas que raio…? – murmurou, olhando para o boneco com estranheza e tentando perceber o sentido da presença daquele objecto ali. Ele reparou que algumas das roupas que enfeitavam o boneco eram similares aos farrapos retirados dos pulsos da pobre rapariga mas, para além disso, aquilo estar ali não fazia qualquer espécie de sentido. Tal como todo o caso.
Suspirando, ele regressou à cena do crime, rezando, sem grande esperança, para que aquele caso não ficasse por resolver.

1 comentário:

  1. Diferente mas bom de ler. Muito bom. Como sempre com a tua marca.Continua. Sempre fica o sabor a querer mais... Beijinhos

    ResponderEliminar