sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A história de Ana (parte 1)

 (história anterior)

O meu nome é Ana Karabastos. Dentro de algumas horas, vou estar numa sala de operações, a receber um transplante de fígado, e os doutores já me avisaram de que as minhas hipóteses de sobrevivência não são as melhores. Por isso… gostava de contar a alguém a história da minha vida. Porquê? Gostava que a minha história fosse conhecida, a minha vida, com muita infelicidade, alguns momentos de alegria e algum sexo à mistura; se não fosse pela existência de duas pessoas na minha vida, eu já me teria suicidado há anos. Mas comecemos pelo início.



Nasci a 19 de Fevereiro de 1981, em Paris, filha de um pescador desempregado de Portugal e duma dona de casa fugida do Chipre, a terceira filha duma irmandade que, um par de anos mais tarde, seria de quatro.
Não me recordo de muito dos meus primeiros anos de vida, mas lembro-me de que era feliz. Sempre junto das minhas irmãs, sempre a brincarmos juntas, sob a vigilância constante da Mamã, enquanto o Papá havia conseguido empregar-se numa fábrica de automóveis. Do que me lembro das conversas com as minhas irmãs mais velhas, não vivíamos uma vida farta, mas os nossos pais faziam os possíveis para nos darem a melhor vida possível. A Mamã falou-nos dos segredos da sua família – da nossa família – do motivo pelo qual nós herdávamos os nossos apelidos dela em vez do do Papá, e começou a revelar-nos algumas qualidades especiais que havíamos herdado dela.
No entanto, no dia 25 de Setembro de 1989, tudo mudou.
Ainda me lembro que era o aniversário de casamento dos nossos pais, e que eles haviam ido jantar fora para celebrar, deixando a minha irmã mais velha, Amélia, que tinha treze anos na altura – e a única de nós quatro que não era morena (ela é loira) – a tomar cargo da casa. Brincámos, vimos TV e divertimo-nos à brava, até que alguém bateu à porta.
Tendo em conta que os nossos pais nos haviam dito que chegavam a casa por volta da meia-noite e ainda eram só 22h37, perguntámo-nos quem poderia ser. Foi a Amélia que abriu a porta, revelando dois polícias. O diálogo que se seguiu ainda me está bem presente na memória…
- Boa noite. – cumprimentou um deles – É esta a casa de Manuel e Anastasia Karabastos?
- Sim. – respondeu Amélia – Porquê, há algum problema, senhor guarda?
Eu e as minhas duas outras irmãs aproximámo-nos dela, enquanto o polícia engoliu em seco e hesitou. Foi o seu parceiro que continuou.
- Vocês são as suas filhas, correcto?
Todas acenámos. Ele suspirou, também, não parecendo muito motivado para continuar aquela conversa. No entanto, ele continuou.
- Lamento informar-vos que a viatura em que os vossos pais seguiam se envolveu num acidente de viação. Um veículo que seguia na faixa de rodagem contrária, cujo condutor apresentava uma taxa de alcoolemia superior ao normal, embateu no carro deles e atirou-o para fora da estrada.
Andreia, Ângela e eu própria ficámos sem pinta de sangue; apenas Amélia teve força suficiente para responder.
- Como… como estão eles?
Nenhum deles disse nada: a expressão dos seus olhos era suficiente. Abraçámo-nos e começámos a chorar. Estávamos sozinhas. Sozinhas em todo o mundo.
Depois dos funerais, havia um grande problema. Tendo em conta que nenhuma de nós era maior de idade, alguém teria de tomar conta de nós. No entanto, toda a família de Papá em França havia morrido ou regressado a Portugal, enquanto a Mamã havia deixado toda a sua família para trás, no Chipre ou na Grécia. Assim, os Serviços Sociais Franceses acolheram-nos, tentando encontrar um lar para nós. No entanto, sabíamos que as nossas hipóteses não eram muito elevadas, principalmente por sermos quatro… e o mais provável seria que acabássemos separadas.
Nos primeiros dias de 1990, uma mulher veio ter connosco e disse que haviam encontrado uma senhora que estava disposta a acolher duas de nós. Olhámos entre nós, tentando decidir quem iria, mas ela ainda não havia acabado de falar.
- Ela disse especificamente que queria acolher em sua casa a Ana e a Andreia.
- Porquê eu e a Ana? – inquiriu Andreia.
- Ela não explicou.
Então, não tivemos outra alternativa senão despedirmo-nos da Ângela e da Amélia. Termos de nos separar das nossas irmãs, meses depois da última despedida dos nossos pais, era demais; mas não tínhamos outra opção. Prometemos mantermo-nos em contacto entre nós… sem termos a mais pequena ideia do que o futuro nos reservaria.

Mudámo-nos para um local nos subúrbios de Paris, cujo nome eu procurei esquecer o melhor que pude. A senhora que nos havia adoptado, Estèlle, uma loira atraente na casa dos quarenta anos, era uma pessoa bastante simpática, que tentou, desde o início, que nos sentíssemos em casa. Ela mimou-nos um pouco, e disse que o seu marido havia morrido num desastre semelhante ao que vitimara os nossos pais; mas lembro-me de Andreia me segredar que algo não batia certo.
É altura de eu falar da minha irmã. Apesar de ser um pouco mais de dois anos mais velha que eu, sempre houve (e ainda há) gente a confundir-nos. Somos bastante parecidas, as nossas caras são semelhantes, temos o mesmo tipo de cabelo, e até a mesma cor dos olhos. A principal diferença acaba por ser que ela é uns quantos centímetros mais alta que eu. No entanto, psicologicamente, não podíamos ser mais díspares: ela tem uma personalidade bastante forte e dominante, e não gosta que lhe digam o que fazer, enquanto eu sou o oposto, submissa e insegura; posso ter os meus momentos dominantes, mas são a excepção à regra.
Uma noite, depois de Estèlle a ter chamado para falar com ela, Andreia apareceu no nosso quarto – nós dormíamos na mesma divisão – de olhos vermelhos e cheios de lágrimas. Perguntei-lhe o que se havia passado, sabendo que nós contávamos tudo uma à outra; mas, pela primeira vez, ela calou-se e recusou-se a responder às minhas perguntas, por mais que eu tentasse. Desistindo, acabei por me deitar na cama, tentando adivinhar o que poderia ter feito a minha irmã, forte como eu já mencionei, chorar e fechar-se da sua melhor amiga. A mesma coisa aconteceu umas noites depois, e depois, e depois… e mesmo assim ela recusava-se a contar-me o que se passava.
Algum tempo depois, também de noite, quando nos preparávamos para ir para a cama, Estèlle disse-me que precisava de falar comigo no seu quarto. Nunca esquecerei o olhar carregado de ódio que a minha irmã lhe dirigiu quando eu saí, sem sequer imaginar o que me iria acontecer…
Quando eu entrei no seu quarto, ela fechou a porta atrás de mim à chave e guardou a chave algures.
- O que se passa, Estèlle? – perguntei. Nenhuma de nós a tratava por “mãe”.
- Shh, querida… – ela voltou-se, olhando para a minha cara. Ela envergava uma blusa simples e calças – Céus… realmente és mesmo parecida com a tua irmã…
- Bom… – não sabia o que dizer.
- De certeza que vocês não são gémeas?
- Uhm, não… ela é dois, uhm… dois anos mais velha que eu. Mas…
Estèlle sentou-se na cama perto de mim e agarrou a minha mão. Comecei a sentir-me pouco à vontade, a tentar descobrir o que se estava a passar.
- Há, ehm… há alguma coisa que desejes falar comigo?
Estèlle não respondeu logo: ela limitou-se a segurar a minha mão; então, ela começou a beijá-la, chupando os meus dedos também. Fiquei paralisada, a inocência dos meus dez anos a vir ao de cima.
- O-o que estás a fazer? – tentei retirar a minha mão, mas Estèlle agarrou-a com força – Por favor! O que estás…
- Ana, por favor… cala-te. – ela parecia estar a implorar.
- Não! Eu…
Ela precipitou-se na minha direcção e forçou-me a deitar na cama debaixo do seu corpo, enquanto ela encostava os seus lábios aos meus. Tentei mexer os meus braços para a afastar de mim, mas eles estavam presos entre os nossos corpos.
Quando Estèlle levantou a cabeça, gritei:
- O que estás a fazer?!
Ela respondeu levantando-se – mas colocando o seu joelho sobre o meu peito, impedindo-me de me levantar – e tirando o seu cinto de cabedal das calças; ela apertou-o à volta do meu peito, imobilizando os meus braços, e despiu-me as calças do meu pijama.
- Ambas são tão adoráveis, tão queridas… – ela sussurrou, enquanto eu tremia de terror – Desde que vos vi, desde que vocês entraram em minha casa, fizeram-me lembrar o quanto eu gosto de rapariguinhas… – e a sua mão acariciou as minhas nádegas nuas.
- NÃÃÃÃO!! SOCOOOORRO!! – gritei o mais alto que consegui, e continuei a gritar até que ela me meteu um lenço na boca, atando-o atrás da minha cabeça.
- Meu querido bebé, não é preciso isso, estamos sozinhas… – e dito isto, ela abriu as minhas pernas.

À medida que os anos foram passando e que os abusos foram acontecendo, foi um milagre como tanto eu como a minha irmã não nos suicidámos. Éramos demasiado novas para compreendermos perfeitamente o que Estèlle nos estava a fazer, mas de qualquer modo sabíamos que era algo mau… mas não podíamos fazer nada. Se disséssemos a alguém, uma de duas coisas podia acontecer: 1) ninguém iria acreditar em nós, iriam contar à Estèlle e nós estaríamos numa situação muito pior; ou 2) os Serviços Sociais levar-nos-iam, entregando-nos a uma família muito pior que Estèlle. E, assim, continuámos a aguentar, dia após dia, noite após noite. Normalmente, ela escolheria uma de nós, mas houve noites em que Estèlle nos levava a ambas para o seu quarto e nos forçava a ter relações com ela…
Começámos a mudar, eu e Andreia. Andreia tornou-se uma revoltada, eternamente em fúria contra o mundo, a sua vida, Estèlle, até os nossos pais, tudo – no entanto, eu era a única pessoa que ela não conseguia odiar; eu, por outro lado, senti-me transformar numa marionete, sem vontade própria, sempre a fazer o que me diziam – especialmente Estèlle. Acho que foi a maneira que encontrei para me proteger dos abusos, meter-me na cama dela, deixar-me ser violada, esperar que tudo aquilo durasse pouco tempo e deixar-me dormir, esperando que o dia seguinte fosse diferente. No entanto, os laços com a minha irmã eram demasiado fortes para perder por completo a minha força de vontade.
No dia 29 de Março de 1995, Andreia conseguiu fugir de casa. Depois de mais uma noite de tortura, ela esvaziou a sua mochila, meteu nela a maior quantidade de roupa que conseguiu e de todo o dinheiro que ela conseguiu roubar da carteira de Estèlle, beijou-me na testa enquanto eu estava meio-adormecida, mexeu na fechadura da porta da frente e fugiu. Quando acordei, não consegui conter as lágrimas ao ler a nota que ela me havia deixado na mão:

Querida irmã,
Por favor, perdoa-me. Como a irmã mais velha, não te consegui proteger. Não aguento mais, suportei o que podia. Qualquer coisa é melhor do que esta vida… portanto, vou-me fazer à estrada. Tentar encontrar as nossas irmãs, um melhor local para viver, mesmo que seja nas ruas… e por isso não te posso levar comigo. Não imaginas o quanto me odeio por te abandonar, deixando-te sozinha com essa puta, mas sou demasiado cobarde para te sujeitar aos caprichos das ruas. Por favor, por favor, minha querida Ana, minha adorada irmã, por favor perdoa-me.

Andreia

Quando os meus olhos leram a última linha, tive um ataque de histeria que resultou numa febre nervosa, fazendo-me ser internada durante alguns dias. Sem a minha irmã ao lado, não sabia como continuar a viver…
Dos anos seguintes, não tenho muitas memórias. Apenas comigo para abusar, Estèlle fez-me dormir na sua cama todas as noites, a envergar as roupas que ela queria, a satisfazer os seus apetites sempre que ela o desejasse. Ainda assim, consegui, por milagre, acabar o 9º ano, e estava a pensar onde iria estudar no ano seguinte… até que chegámos ao dia 23 de Janeiro de 1999.

Ouviu-se uma batida repentina na porta. Eu estava na sala de estar, a ver televisão, envergando um vestido que Estèlle havia comprado para mim (“faz-te parecer tão inocente”, dissera); levantei-me, gritando “Só um minuto!” enquanto avançava em direcção à porta.
Quando a abri, a minha boca abriu-se desmesuradamente.
Não consegui deixar de olhar para uma morena alta fracamente coberta por um top preto (a evidenciar o seu umbigo furado) e calções de ganga; lembro-me de olhar para as suas botas de cabedal pretas e de pensar ‘meu Deus, são tão bonitas…’, antes de olhar com atenção para a sua cara, finalmente conseguindo ver por detrás da maquilhagem que ostentava… e abracei-a, com lágrimas nos olhos, chorando:
- Andreia!!! Voltaste!!!
Senti os seus braços a abraçarem-me em resposta, enquanto a sua cabeça se encostava no meu ombro e ela sussurrou:
- Tive tantas saudades tuas, minha irmã querida…
Ouvi os passos de Estèlle atrás de mim.
- O que se passa aqui?
Andreia largou-me, olhando para a sua antiga mãe adoptiva.
- Olá, mãezinha. – cumprimentou, com uma voz gelada.
- A-Andreia? Tu… tu voltaste? – Estèlle estava quase a sorrir.
- Não por tua causa, cabra. Vim buscar a minha irmã: ela vai viver comigo, a partir de agora.
O sorriso da nossa mãe adoptiva transformou-se num esgar de raiva.
- O quê?!
- Eu sou adulta, agora, e tenho dinheiro suficiente para subsistir, eu mais ela. Por isso, vamos embora. Acabou-se a pedofilia para ti, sua pervertida… se bem que eu acredito que vás logo arranjar alguma miudita para meteres na tua cama…
A minha irmã foi interrompida quando Estèlle a esbofeteou.
- Cabra! Quem raio pensas tu que és para falares assim comigo? Dei-vos amor, uma casa! Sem mim, vocês não seriam nada!
- Sim, deste-nos muito amor, é verdade… demasiado amor. Fizeste de nós as tuas putas! – então, ela olhou para mim – Arruma as tuas coisas. Vamo-nos.
- Não te mexas! – gritou Estèlle, e eu parei – Nem penses que vais retirá-la de mim…
- Esqueceste-te duma coisa, velha: dentro de menos de um mês, Ana vai fazer dezoito anos… e legalmente capaz de tomar as suas próprias decisões. – a sua boca sorriu diabolicamente – E que achas tu que ela vai querer fazer?
Estèlle olhou para mim, tentando obter algum apoio… mas não o teve.
- Ana, preferes mesmo viver com esta, esta… puta, do que aqui, comigo, na nossa casinha maravilhosa?
Olhei para Estèlle, depois para Andreia, novamente para Estèlle, e só então respondi:
- Desculpa. Os últimos anos foram… demais para mim, para a minha cabeça. Apenas quero sair desta tortura, desta casa… de ti, ‘mamã’. – o meu olhar regressou à minha irmã – Vou.
Consegui ver o desapontamento estampado na cara de Estèlle. No entanto, eu havia sido sincera. Se lá ficasse mais tempo, acabaria por me matar. Estava chegando ao limite, farta dos anos de abusos sexuais… e de não ter a minha irmã para me apoiar. Assim, fui para o meu quarto, arrumar as minhas coisas.
Quando coloquei os sacos com as minhas coisas ao pé da porta de entrada, consegui ver que Estèlle tinha lágrimas nos olhos. E, apesar de todos os anos em que ela me torturara, me forçara a ter relações sexuais com ela, e me tornara na sua escrava sexual, tenho de ser honesta: eu tive pena dela. Assim, abracei-a, debaixo do olhar inquiridor de minha irmã, e sussurrei:
- Adeus.
Então, virei-me e parti, seguida de Andreia.
Nunca mais a voltei a ver.

(continua...)

1 comentário:

  1. Uma història verdadeiramente atroz... està muito bem concebida Vygnaskrl ! ;)

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